sexta-feira, março 18, 2005
Aos seus lugares
Sábado passado, no Palácio da Ajuda, a televisão proporcionou-nos uma daquelas imagens que valem por mil palavras. José Sócrates discursava, depois de empossado como primeiro-ministro, tendo ao seu lado o Presidente da República, ambos de pé. Sentada à sua frente, uma restrita plateia, que incluía os membros do novo Governo, os cessantes e as figuras institucionais do Estado. Sócrates falava da magna questão do défice externo e das escassas soluções para o enfrentar. De repente, a câmara dá-nos um plano do primeiro-ministro cessante, sentado na primeira fila: Pedro Santana Lopes bocejava perdidamente. Eram cinco da tarde de sábado, o assunto era certamente penoso e, a partir daquele momento, já não havia mais necessidade de manter poses de estadista.
Nos três dias que se seguiram, assistimos a mais um episódio, dos tais de que se socorreu o Presidente da República para despedir Santana das suas funções governativas. Um milhão de lisboetas só podem ter-se sentido enxovalhados pela forma eloquente como Santana mostrou que estava a ver se caía qualquer coisa de pessoalmente mais apetecível, antes de se decidir, por ausência de alternativas, a regressar à câmara da maior cidade do país. Para quem se reclamava de “uma forma nova de fazer política”, esta demonstração foi definitiva. Ele próprio se encarrega de reduzir a nada os argumentos daqueles que criticaram a decisão de Sampaio, falando da interrupção do ciclo governativo ou do precedente aberto de o Presidente poder dissolver um governo assente numa maioria parlamentar. Como percebeu a grande maioria dos portugueses, não se tratou de doutrina nova, nem de abuso dos poderes presidenciais: tratou-se de uma medida de excepção, ditada pela necessidade de repor a dignidade do Estado, ao nível da sua representação governativa.
Mais do que esperança, o que os portugueses sentem, desde 20 de Fevereiro, é uma sensação de alívio. Sócrates pode governar bem ou mal, mas ninguém espera dele uma atitude de leviandade, enquadrada por uma constante e primária cobertura de propaganda e promoção da imagem.
Apesar deste nenhum tempo decorrido, há já quem reclame que os colunistas que antes criticavam Santana Lopes comecem já a fazer o mesmo com Sócrates, abolindo, como o fizeram com Santana, o tradicional período do “estado de graça”. E, mais curioso ainda, até há quem o tenha já começado a fazer, com medo de que lhe chamem incoerente. Pois eu, que não só não respeitei o período de graça, como até comecei a criticar o Governo de Santana antes mesmo de ele ter tomado posse, não enfio o barrete. Porque as diferenças são, à partida, abissais: Sócrates não é Santana, e esse é o ponto essencial. O homem que escolhe os cargos políticos de acordo com as suas conveniências pessoais não merece dúvida nem condescendência - ou então acabemos com o choradinho sobre a falta de categoria da classe política. Por outro lado, Sócrates foi eleito por metade dos portugueses, e Santana foi cooptado, e também por razões de interesse pessoal, por aquele que eu, pessoalmente, considero o mais vazio e o mais profiteur de todos os políticos portugueses contemporâneos: Durão Barroso.
As tentativas de encontrar, desde já, terreno para atacar o Governo de Sócrates, de tão esforçadas, tornam-se ridículas. Vítor Constâncio abre a boca, defendendo impostos sobre o sector automóvel e, apenas porque é socialista, toda a gente toma as suas palavras como uma declaração do Governo, passando logo a criticar a “medida governamental”. O ministro das Finanças diz uma coisa perfeitamente banal - que, se não se conseguir conter a despesa pública, será fatal aumentar impostos - e os mesmos que criticaram o descontrolo do défice, as manobras de encobrimento, como a expropriação das reformas dos pensionistas da Caixa Geral de Depósitos, ou o célebre discurso do “milagre das rosas” de Santana Lopes (aumento dos salários e das pensões, descida dos impostos), e que exigiram uma “política de verdade”, caem-lhe em cima, como se ele fosse obrigado, em alternativa, e descobrir jazidas de ouro ou poços de petróleo.
No primeiro dia de trabalhos do novo Parlamento, o líder comunista, Bernardino Soares, anunciou que o PCP já tinha entregue seis propostas de lei, entre as quais duas, apresentadas como verdadeiras evidências, de elementar justiça e execução fácil: a subida intercalar das pensões e dos salários. A seriedade da proposta é directamente correspondente à sua facilidade: falta dizer quanto custaria tal medida e onde é que o Governo iria retirar verbas do Orçamento para a satisfazer, sem ofender sagrados direitos adquiridos de todos os outros sectores - agricultura, indústria, obras públicas, saúde, educação, poder local.
No domínio do politicamente correcto, as “mulheres socialistas” ficaram indignadas por José Sócrates ter apresentado apenas duas mulheres entre 16 ministros - e, seguramente também, pelo facto de essas duas terem escolhido homens, e não mulheres, para seus secretários de Estado. Para lavar a honra do género, aqui no PÚBLICO, Mário Mesquita e Ana Sá Lopes congeminaram um governo alternativo só de mulheres, para provarem a sem razão de Sócrates, quando se justificou dizendo que não havia mulheres socialistas em qualidade suficiente para a função. O resultado do exercício é verdadeiramente patético: são aproveitadas todas, rigorosamente todas, as mulheres que se conhecem com alguma ligação ao PS. Nem sequer lá falta Edite Estrela, autora de uma gestão autárquica tão notável em Sintra que os eleitores, embora já habituados a serem abusados e cimentados, a despediram na primeira oportunidade. Aliás, fiquei agora a saber (confesso que até aqui não tinha reparado) que Edite Estrela, certamente pelos méritos revelados em Sintra, e não por ser “mulher socialista”, é deputada europeia e agora líder da bancada do PS em Estrasburgo (de cujo conforto e abrigo se declara também “desiludida” por ver tão poucas mulheres no Governo de Sócrates. Quero apostar que a desilusão é tanta que ela vai seguramente renunciar ao seu cargo, como forma de protesto: esperem sentados para verem). Neste caso até, a crítica extravasou fronteiras e apareceu uma deputada europeia húngara, de seu nome Zita, a declarar-se também chocada com a composição sexual do Governo do seu “amigo José Sócrates”. “Numa próxima remodelação”, diz a deputada Zita, “espero que ele substitua homens por mulheres.” Repare-se: ela deseja ao seu “amigo” uma rápida remodelação, que é como quem diz um rápido fiasco. E deseja que ele a aproveite, não para substituir incompetentes por competentes, independentemente do género, nem sequer para substituir homens incompetentes por mulheres competentes: trata-se apenas de substituir homens, competentes ou não, por mulheres, competentes ou não.
Quanto ao resto, ainda não reparei se o professor Marcelo já começou a criticar o novo Governo, se Freitas do Amaral já virou pró-americano, se Luís Delgado ainda continua a chorar pelo “Pedro”, se Eduardo Prado Coelho já desistiu de fuzilar o Luís Delgado e de promover, semana sim semana não, Manuel Maria Carrilho a qualquer coisa, e se Jaime Nogueira Pinto já começou a “refundar a direita”, com base nos valores defendidos pelo “doutor Salazar” - Deus, Pátria, Família - acrescentados de um quarto, de sua lavra: “A Propriedade!”
O que eu queria mesmo agora é que chovesse sobre nós. Uma chuva densa, constante, dias a fio. Uma chuva que tudo lavasse, que devolvesse a esperança onde só há desilusão, que reanimasse todas as coisas verdadeiramente importantes. Uma chuva refundadora.
Miguel Sousa Tavares - PÚBLICO
:: enviado por JAM :: 3/18/2005 01:18:00 da tarde :: início ::