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segunda-feira, janeiro 24, 2005

A importância da literatura

Em feiras do livro ou mesmo em livrarias, frequentemente alguém se aproxima pedindo-me um autógrafo. “É para a minha mulher, filha ou mãe”, explica. “Ela adora ler!” De pronto pergunto: “E o senhor? Não gosta de ler?” E a resposta é quase sempre a mesma: “Gosto, mas ando muito ocupado.” Segundo este raciocínio, a literatura seria uma actividade dispensável, uma diversão que somente pessoas com muito tempo livre poderiam permitir-se.
Vivemos numa era de especialização em virtude do extraordinário desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e da consequente fragmentação do conhecimento em incontáveis avenidas e compartimentos. Mas, nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo exclusor do que esta verdade que surge sempre na grande literatura: Somos todos essencialmente iguais. Nada nos ensina melhor do que os bons romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do legado humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade humana.
O elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos transcende todas as barreiras temporais. A sensação de ser parte da experiência colectiva através do tempo e do espaço é a maior conquista da cultura, e nada contribui mais para a renovar a cada geração do que a literatura.
Uma humanidade sem romances seria muito parecida com uma comunidade de gagos e afásicos. As pessoas que nunca lêem, lêem pouco ou lêem apenas lixo, dispõem de um repertório mínimo de palavras para se expressar. Não se trata de uma limitação somente verbal, mas também intelectual, uma indigência de ideias e conhecimento, porque os conceitos pelos quais assimilamos a realidade não são dissociados das palavras que a nossa consciência usa para os reconhecer e definir.
A sociedade livre e democrática requer cidadãos responsáveis, críticos, independentes, difíceis de manipular, em constante efervescência espiritual e cientes da necessidade de examinar continuamente o mundo em que vivemos, para tentar aproximá-lo do mundo em que gostaríamos de viver. Sem insatisfação e rebeldia, ainda viveríamos em estado primitivo, a história teria parado, o indivíduo não teria nascido, a ciência não teria alçado voo, os direitos humanos não teriam sido reconhecidos e a liberdade não existiria.
A verdade é que o desenvolvimento dos media audiovisuais – que, ao mesmo tempo que revolucionam as comunicações, monopolizam cada vez mais o tempo que dedicamos ao lazer, relegando a leitura a segundo plano – permite-nos imaginar para um futuro próximo uma sociedade moderníssima, repleta de computadores, écrans e microfones, mas sem livros. Temo que este mundo cibernético seja profundamente incivilizado, sem espírito, apático, como uma resignada humanidade de robôs. Depende do nosso discernimento e da nossa vontade que essa utopia macabra se realize ou se apague.
Se queremos evitar o desaparecimento dos romances, e com isso o desaparecimento da própria fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que refina a nossa sensibilidade e nos ensina a falar com eloquência e precisão, que nos torna livres e nos garante uma vida mais rica e intensa, então devemos agir. Precisamos de ler bons livros e incitar à leitura os que vêm depois de nós.

Mário Vargas Llosa
Extraído dum texto com o título original “Um mundo sem romances”, retirado da edição de Março de 2003 das Selecções do Reader's Digest.

:: enviado por JAM :: 1/24/2005 09:10:00 da manhã :: início ::
1 comentário(s):
  • O post é extenso e eu só o li uma vez.

    O bom-senso diz-me para o reler antes de escrever qualquer comentário.

    ...

    Mandei o bom-senso dar uma volta.

    De facto, um mundo sem livros seria, pelo menos para mim, algo de inimaginável e, devo dizer, atroz.

    E perigoso, concordo.

    E por falar em livros, "Fahrenheit 451" de Ray Bradbury é um daqueles que não dispenso e que nos conta a história de um mundo onde os livros foram proibidos.

    Se as pessoas lêem muito ou pouco não sei. Julgo que pouco, pelo menos em Portugal - a julgar pelo que nos dizem editores e livreiros.

    E que a linguagem verbal é onde "assenta" tudo aquilo que somos, pensamos e sentimos, disso não há qualquer dúvida.

    Discordo apenas de uma ideia: viver também é importante, pois que ler também é viver - embora viver não seja só isso.

    De Blogger Rita, em 24/1/05 11:55  
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