sexta-feira, maio 06, 2005
Constituição Europeia - A forma e o conteúdo
Costuma-se dizer que o conteúdo é mais importante do que a forma. Em geral concordo com a ideia. No caso particular de uma Constituição - texto fundamental que regula os direitos e garantias dos cidadãos e a organização política de um Estado (Dicionário Porto Editora) – não me pareça que se possa dissociar a forma do conteúdo.
A primeira surpresa, para quem se dê ao trabalho de ler a Constituição, é a sua extensão : um preâmbulo, 448 artigos repartidos por 4 Partes, 36 protocolos, 2 anexos e duas declarações, num total de 475 páginas. Em comparação, a Constituição portuguesa (que não é nada pequena) tem um preâmbulo e 299 artigos em 89 páginas, a francesa tem 89 artigos em 26 páginas e a americana 7 artigos ou 24 secções que cabem em 5 páginas.
A leitura deixa-nos sem saber se estamos perante uma Constituição, um Tratado, uma Lei ou um Regulamento. Talvez de tudo um pouco: encontram-se no mesmo texto grandes declarações de princípios (I), decretos (ex: III-161), regras de funcionamento (III-184) e directivas (Ficamos a saber pelo Anexo I que o artigo III-226 se aplica a tripas, bexigas e buchos de animais, entre outros). Mistura-se o essencial com o detalhe.
As regras comuns, entre Estados ou entre Instituições, são de uma complexidade incrível. Os poderes legislativo e executivo são partilhados por diversas Instituições. O processo de decisão varia consoante a área de que se está a falar. É reconhecida a independência das Instituições, implicitamente (Tribunal) ou explicitamente (Banco Central), mas diz-se que deve haver “uma cooperação leal” (I-19-2) entre elas, o que quer que isso queira dizer.
O texto é extraordinariamente difícil de ler e, mais importante, de interpretar, abrindo a porta a toda a espécie de conflitos jurídico/constitucionais.
A Constituição Europeia está dividida em quatro partes : definição de objectivos, direitos fundamentais, regras de funcionamento e disposições gerais. Até aqui nada a dizer. A estrutura é, de alguma maneira, lógica. Só que 130 das 202 páginas que não são Protocolos e Anexos correspondem à Parte III – Políticas e Funcionamento da União, ou seja 2/3 da Constituição são para definir as regras de funcionamento da UE.
Mais, o grosso da Constituição (263 páginas) são os Protocolos e Anexos, a que só se dará a devida importância quando for preciso olhar para eles. Embora haja alguns de duvidosa utilidade (seria mesmo necessário acrescentar um protocolo para proteger o povo Sami ? isso não deveria ser óbvio numa Constituição como parte integrante dos direitos fundamentais ? ou as minorias que não são expressamente declaradas não são para proteger ? e seria mesmo necessário definir o euro como moeda da UE (I-8°) e depois acrescentar um protocolo a isentar o Reino Unido e a Irlanda ? não bastaria declarar que o euro é a moeda da UE para os países que a ele aderiram ? ) outros há, como o Protocolo Relativo aos Critérios de Convergência, que prometem discussões interessantes em momentos de aperto económico.
Estes aspectos formais só são importantes na medida em que se reflectem, como seria de esperar, no conteúdo. Sem querer alongar-me muito sobre o que está na Constituição (ficará para outros posts) dou apenas dois exemplos de “clareza”:
A propósito do Comité Económico e Financeiro, (Artigo III – 192 c)) “Sem prejuízo do artigo III-344.o, contribuir para a preparação dos trabalhos do Conselho a que se referem o artigo III-159.o, os n.os 2, 3, 4 e 6 do artigo III-179.o, os artigos III-180.o, III-183.o e III--184.o, o n.o 6 do artigo III-185.o, o n.o 2 do artigo III-186.o, os n.os 3 e 4 do artigo III-187.o, os artigos III-191.o e III-196.o, os n.os 2 e 3 do artigo III-198.o, o artigo III-201.o, os n.os 2 e 3 do artigo III-202.o, e os artigos III 322.o e III-326.o, e exercer outras funções consultivas e preparatórias que lhe forem confiadas pelo Conselho;”. Bastante claro, não ?
Outro exemplo: “Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.”.
Agora digam-me se, à luz deste artigo, a recente lei francesa sobre a interdição de símbolos religiosos em locais de serviço público, é constitucional ou não. O Tribunal Constitucional francês fez um favor a Chirac ao dizer que sim, outros constitucionalistas franceses continuam a afirmar que a lei será anticonstitucional se a Constituição Europeia for aprovada. Basta que uma organização muçulmana (porque foi contra o véu islâmico nas escolas que a lei foi feita) recorra para o Tribunal de Justiça Europeu e lá vamos nós para um debate político/religioso sem fim.
Na verdade, a sensação com que se fica é a de que a redacção de alguns artigos é propositadamente ambígua, quem sabe se no propósito de deixar para mais tarde e para outros a interpretação exacta de alguns pontos mais polémicos.
Um outro aspecto formal da Constituição é a sua tendência para se repetir. Um exemplo : a igualdade entre homens e mulheres é declarada no Artigo I-3°, no II-83°, no III-116°, no III-210° e no III-214°. Eu sei que o assunto é importante, mas é preciso repeti-lo cinco vezes numa Constituição ?
Outro : a protecção do ambiente aparece sete ou oito vezes na Constituição apesar de ter uma secção (III – 5) que lhe é inteiramente dedicada.
E as repetições continuam ao longo da Constituição, mesmo para assuntos mais comezinhos como as regras de votação. Conforme se vai avançando na leitura, mais nos fica a sensação de que se já leu aquilo em qualquer parte. Desafio: quantas vezes é mencionado o mercado na Constituição Europeia ? Resposta : 76. E na Constituição portuguesa ? Resposta : Uma !
Em suma, ao mesmo tempo que se fala de abertura e democracia, cria-se uma Constituição de tal maneira complexa que apenas um numero diminuto de cidadãos a compreenderá. Ao mesmo tempo criam-se condições para que um órgão político como é o Tribunal de Justiça (lá iremos mais tarde) interprete a Constituição em função das conjecturas políticas momentâneas, o que é manifestamente contraditório com a noção de Constituição.
Mesmo do ponto de vista formal a Constituição é mal feita. Extensa, complicada, repetitiva e ambígua.
A primeira surpresa, para quem se dê ao trabalho de ler a Constituição, é a sua extensão : um preâmbulo, 448 artigos repartidos por 4 Partes, 36 protocolos, 2 anexos e duas declarações, num total de 475 páginas. Em comparação, a Constituição portuguesa (que não é nada pequena) tem um preâmbulo e 299 artigos em 89 páginas, a francesa tem 89 artigos em 26 páginas e a americana 7 artigos ou 24 secções que cabem em 5 páginas.
A leitura deixa-nos sem saber se estamos perante uma Constituição, um Tratado, uma Lei ou um Regulamento. Talvez de tudo um pouco: encontram-se no mesmo texto grandes declarações de princípios (I), decretos (ex: III-161), regras de funcionamento (III-184) e directivas (Ficamos a saber pelo Anexo I que o artigo III-226 se aplica a tripas, bexigas e buchos de animais, entre outros). Mistura-se o essencial com o detalhe.
As regras comuns, entre Estados ou entre Instituições, são de uma complexidade incrível. Os poderes legislativo e executivo são partilhados por diversas Instituições. O processo de decisão varia consoante a área de que se está a falar. É reconhecida a independência das Instituições, implicitamente (Tribunal) ou explicitamente (Banco Central), mas diz-se que deve haver “uma cooperação leal” (I-19-2) entre elas, o que quer que isso queira dizer.
O texto é extraordinariamente difícil de ler e, mais importante, de interpretar, abrindo a porta a toda a espécie de conflitos jurídico/constitucionais.
A Constituição Europeia está dividida em quatro partes : definição de objectivos, direitos fundamentais, regras de funcionamento e disposições gerais. Até aqui nada a dizer. A estrutura é, de alguma maneira, lógica. Só que 130 das 202 páginas que não são Protocolos e Anexos correspondem à Parte III – Políticas e Funcionamento da União, ou seja 2/3 da Constituição são para definir as regras de funcionamento da UE.
Mais, o grosso da Constituição (263 páginas) são os Protocolos e Anexos, a que só se dará a devida importância quando for preciso olhar para eles. Embora haja alguns de duvidosa utilidade (seria mesmo necessário acrescentar um protocolo para proteger o povo Sami ? isso não deveria ser óbvio numa Constituição como parte integrante dos direitos fundamentais ? ou as minorias que não são expressamente declaradas não são para proteger ? e seria mesmo necessário definir o euro como moeda da UE (I-8°) e depois acrescentar um protocolo a isentar o Reino Unido e a Irlanda ? não bastaria declarar que o euro é a moeda da UE para os países que a ele aderiram ? ) outros há, como o Protocolo Relativo aos Critérios de Convergência, que prometem discussões interessantes em momentos de aperto económico.
Estes aspectos formais só são importantes na medida em que se reflectem, como seria de esperar, no conteúdo. Sem querer alongar-me muito sobre o que está na Constituição (ficará para outros posts) dou apenas dois exemplos de “clareza”:
A propósito do Comité Económico e Financeiro, (Artigo III – 192 c)) “Sem prejuízo do artigo III-344.o, contribuir para a preparação dos trabalhos do Conselho a que se referem o artigo III-159.o, os n.os 2, 3, 4 e 6 do artigo III-179.o, os artigos III-180.o, III-183.o e III--184.o, o n.o 6 do artigo III-185.o, o n.o 2 do artigo III-186.o, os n.os 3 e 4 do artigo III-187.o, os artigos III-191.o e III-196.o, os n.os 2 e 3 do artigo III-198.o, o artigo III-201.o, os n.os 2 e 3 do artigo III-202.o, e os artigos III 322.o e III-326.o, e exercer outras funções consultivas e preparatórias que lhe forem confiadas pelo Conselho;”. Bastante claro, não ?
Outro exemplo: “Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.”.
Agora digam-me se, à luz deste artigo, a recente lei francesa sobre a interdição de símbolos religiosos em locais de serviço público, é constitucional ou não. O Tribunal Constitucional francês fez um favor a Chirac ao dizer que sim, outros constitucionalistas franceses continuam a afirmar que a lei será anticonstitucional se a Constituição Europeia for aprovada. Basta que uma organização muçulmana (porque foi contra o véu islâmico nas escolas que a lei foi feita) recorra para o Tribunal de Justiça Europeu e lá vamos nós para um debate político/religioso sem fim.
Na verdade, a sensação com que se fica é a de que a redacção de alguns artigos é propositadamente ambígua, quem sabe se no propósito de deixar para mais tarde e para outros a interpretação exacta de alguns pontos mais polémicos.
Um outro aspecto formal da Constituição é a sua tendência para se repetir. Um exemplo : a igualdade entre homens e mulheres é declarada no Artigo I-3°, no II-83°, no III-116°, no III-210° e no III-214°. Eu sei que o assunto é importante, mas é preciso repeti-lo cinco vezes numa Constituição ?
Outro : a protecção do ambiente aparece sete ou oito vezes na Constituição apesar de ter uma secção (III – 5) que lhe é inteiramente dedicada.
E as repetições continuam ao longo da Constituição, mesmo para assuntos mais comezinhos como as regras de votação. Conforme se vai avançando na leitura, mais nos fica a sensação de que se já leu aquilo em qualquer parte. Desafio: quantas vezes é mencionado o mercado na Constituição Europeia ? Resposta : 76. E na Constituição portuguesa ? Resposta : Uma !
Em suma, ao mesmo tempo que se fala de abertura e democracia, cria-se uma Constituição de tal maneira complexa que apenas um numero diminuto de cidadãos a compreenderá. Ao mesmo tempo criam-se condições para que um órgão político como é o Tribunal de Justiça (lá iremos mais tarde) interprete a Constituição em função das conjecturas políticas momentâneas, o que é manifestamente contraditório com a noção de Constituição.
Mesmo do ponto de vista formal a Constituição é mal feita. Extensa, complicada, repetitiva e ambígua.
:: enviado por U18 Team :: 5/06/2005 08:50:00 da manhã :: início ::