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segunda-feira, maio 14, 2007

O inferno é um videojogo

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A valente decisão de Ratzinger — teólogo, no fim de contas — de ratificar a existência real do inferno, pôs termo à larga e nefasta influência de Borges que, em meados do século passado, tinha decretado que a teologia não era mais do que uma forma particular de literatura fantástica. Assim pois, o júbilo dos teólogos redimidos pelo seu ex-colega Bento XVI foi enorme por três motivos bem distintos: Primeiro, era muito diferente trabalhar sem rede, sem inferno, ou com um inferno pertencente a uma mera metáfora da literatura fantástica, e trabalhar com o justiceiro fogo eterno funcionando a todo o gás, em pleno caldeirão do Pedro Botelho. Em segundo lugar, as todo-poderosas ficções fantásticas que tanto fascinam as novas gerações agarradas aos computadores (screenagers) não têm a sua procedência em Borges, Tolkien, Philip Dick, mangas japoneses, Harry Potter, bandas desenhadas de super-heróis, contos de fadas, efeitos especiais e espaciais das produções Lucas, Playstation 2 ou 3, mas antes procedem em linha directa das iconografias e cenografias que os teólogos clássicos tinham idealizado para pintar o inferno. Em terceiro lugar, porque era lógico que, se o Vaticano se tinha especializado na fabricação em série do apocalipse — qual deles mais terrível e devastador — e se o inferno só pertencia (como defendiam Borges e Wojtyla) à mesma categoria literária do inferno de Comala de Rulfo, a cidade das maravilhas de Gabo, o condado de Yoknapatawpha de Faulkner, La Mancha de Cervantes, ou outra qualquer fanta ou meta-ficção, nesse caso faltava algo na narração católica — faltava o final: as tradicionais indústrias justiceiras do castigo, o arrependimento, a salvação e a perdição eternas.

E aqui há duas grandes teorias. Que Bento XVI, influenciado pela muito influente crítica literária que ultimamente tenta demonstrar que os lugares imaginários da nossa melhor literatura não passam de pseudónimos da realidade e que, como tal, o inferno, longe de ser uma metáfora ou um disfarce do realismo teológico, é um lugar exacto que existe e obedece a leis — secção leis físicas, incluindo as quânticas. E a segunda — a minha teoria preferida — é que o actual fervor das massas juvenis pelos videojogos voltou a infundir no globo, tal como na Idade Média, a paixão pelos infernos dantescos e seria ridículo, nessas circunstâncias, que o Vaticano renunciasse à sua tradição.

Não sei que imagens teria Bento XVI na cabeça no momento de reivindicar o inferno — só pode tratar-se de imagens tenebrosas — e condenar a heresia a célebre proposta de Borges, precipitadamente adoptada por Vojtyla, mas aposto que ele terá feito a mesma reflexão que eu fiz perante essa guerra mundial que opõe a PlayStation3, a XBox e a Wii, as quais concebem essas narrativas do futuro aflitivo que nunca mais voltarão a ser nem literárias, nem cinematográficas, nem sequer televisivas. Porque se a juventude actual / global crê a pés juntos nesses infernos dos videojogos que propõem as três consolas multinacionais, quer sejam os abismos de Narnia, os túneis de Tomb Raider, as catacumbas da Final Fantasy, os monstros da Warcraft ou o terrorismo subterrâneo do Urban Caos (para só citar os clássicos), então alguém deveria exercer os direitos de autor sobre o inferno analógico.

Seria estúpido se os teólogos renunciassem agora a esses infernos e apocalipses que eles próprios inventaram um dia, que tanto influíram nas literaturas clássicas, que são a narrativa juvenil favorita do século XXI e que somente tentam reproduzir nos ecrãs domésticos, interactivos e online os meandros do inferno de Dante, só que muito mais tenebrizados, se assim se pode dizer. E uma vez que de momento não existem videojogos sobre o céu ou o limbo — seriam um fracasso comercial — então é lógico que esse grande teólogo clássico que é Ratzinger, na altura em que atacam os modernos videojogos propondo-nos esses remakes do antigo inferno em versão digital e interactiva, se tenha decidido por fim a reivindicar o velho copyright Vaticano.

(Traduzido da Tribuna de Juan Cueto, El País Semanal, 11/05/2007)

:: enviado por JAM :: 5/14/2007 07:58:00 da tarde :: início ::
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